Presidente internacional de MSF fala sobre a crise de financiamento do Fundo Global

“Não faz sentido reduzir o número de pessoas que precisam de tratamento por meio do racionamento da assistência médica”, diz Dr. Unni Karunakara

Em uma decisão que pode ter um grande impacto sobre os pacientes em países em desenvolvimento, o Fundo Global de Combate à Aids, TB e Malária anunciou que não vai aceitar pedidos de financiamento para apoiar programas de tratamento devido a uma queda catastrófica nos recursos de doadores.

O Fundo Global, financiado, em grande parte, por governos, foi estabelecido há 10 anos como mecanismo de luta contra a pandemia de Aids e contra a malária e a TB, outras duas doenças infecciosas que matam milhões de pessoas todos os anos em países em desenvolvimento.

Em muitos países, MSF trabalha em colaboração com autoridades nacionais de saúde, que dependem do apoio do Fundo Global para oferecer tratamento essencial contra essas doenças. Esses países não podem arcar com todos os custos para cobrir os custos de tratamento para essas três doenças. Portanto, o anúncio do Fundo Global causou pânico e preocupação.
O presidente internacional de MSF, Dr. Unni Karunakara, fala sobre a resposta de MSF à crise de financiamento e o que precisa ser feito.

Como organização médica que trata pacientes com HIV, TB e Malária em países em desenvolvimento, qual foi a reação de MSF à notícia dos cortes do Fundo Global?
O sentimento dentro da organização é de choque e desânimo, pelo fato do Fundo Global – responsável por grandes passos na expansão do tratamento contra HIV, TB e malária mundialmente – estar sendo atingido por uma redução de financiamento tão grande que põe em risco a vida de muitas pessoas que vivem em países em desenvolvimento. MSF está presente nesses locais e nós podemos ver quão frágeis são os difíceis progressos obtidos no terreno.

O Fundo está anunciando agora que vai oferecer o suporte mínimo a países cujos programas de tratamento sofreriam interrupções até o começo de 2014 caso não recebam financiamento. Mas não restam dúvidas de que a expansão dos programas de tratamento de HIV,TB e malária vai ser freada, e isso vai afetar muito os pacientes, suas famílias e as comunidades. Achamos absurda a mensagem que os doadores e o Fundo Global estão mandando aos países, para que parem de aceitar pacientes nos seus programas de tratamento.

Quem é o responsável por isso?
Houve uma queda geral nos financiamentos de doadores internacionais, especialmente para Aids, nos últimos anos, mas a escassez dos recursos hoje se deve aos comportamento dos doadores do Fundo. Alguns, como Dinamarca e Holanda, reduziram as verbas que tinham se comprometido a doar. Outros interromperam suas contribuições devido às suas crises econômicas domésticas – como é o caso da Irlanda, Espanha e Itália – e não renovaram seus compromissos. MSF está preocupada também que a doação do maior contribuinte, os Estados Unidos, esteja ameaçada. No entanto, os responsáveis são todos os financiadores que votaram pelo cancelamento desta rodada de pedidos de financiamento e que estão, no longo prazo, privando o Fundo de recursos tão necessários.

Quais serão os efeitos dos cortes para as pessoas que recebem tratamento contra o HIV?
Quando tratamos HIV, TB e malária, nós trabalhamos em colaboração com autoridades nacionais de saúde que, de qualquer maneira, serão afetadas pelos cortes. Se os Ministérios da Saúde desses países não receberem os recursos previstos, nenhuma organização humanitária, como MSF, poderá suprir as lacunas.

Em alguns países onde trabalhamos, as autoridades já estão sofrendo para conseguir oferecer tratamento contra o HIV. No Zimbábue, por exemplo, o governo já começou a usar os estoques de reserva para compensar a escassez de medicamentos.

Serão necessárias medidas inovadoras e eficientes para levar cuidados médicos aos pacientes e continuar expandindo a oferta de tratamento, ainda que em menor escala. Mas a expansão do tratamento para as três doenças, como precisávamos, não será possível sem os financiamentos adicionais.

O que é pior em toda essa situação é que muitos países afetados estão tentando implementar novas estratégias que poderiam frear a epidemia de HIV. Por exemplo, o governo de Uganda quer dobrar a oferta atual de tratamento contra HIV; o Quênia quer oferecer tratamento vitalício para mulheres soropositivas grávidas, para reduzir o número de recém-nascidos com HIV; outros países, como Moçambique, querem antecipar o tratamento com medicamentos melhores, para salvar a vida de mais pacientes e reduzir as chances de novas infecções.  

Novos estudos mostraram que pessoas recebendo tratamento não só se beneficiam apenas individualmente, como têm menos chance de transmitir o vírus a outras pessoas. Assim, comunidade fica mais protegida.

Esse não é o momento de interromper o financiamento.

E as pessoas que precisam de tratamento contra TB, ou malária?
No ano passado, o Fundo respondeu pela grande maioria de todos os gastos internacionais em programas de TB. Contra todas as expectativas, ele vem registrando um aumento no número de pessoas que recebem tratamento contra TB resistente a medicamentos – em 2010, esse aumento foi de 50%. No entanto, assim como aconteceu com HIV, quando começamos a ver alguns resultados concretos, os recursos não estão mais disponíveis. No Uzbequistão, MSF trabalhou com as autoridades locais e está oferecendo um programa de tratamento para pacientes com TB resistente a medicamentos. O plano era aumentar o número de pacientes recebendo tratamento no país, para tentar frear a doença. Esse plano, agora, está em risco.

Nós esperamos anos para conseguir oferecer um diagnóstico preciso e rápido para pessoas com TB. Agora, está sendo desenvolvido um teste que faria o processo de diagnóstico muito mais fácil. Mas sem o financiamento necessário, esse avanço não vai beneficiar os nossos pacientes.

Com relação à malaria, também houve uma série de avanços que permitem que salvemos a vida de mais crianças. Uma pesquisa realizada no ano passado mostrou que a mudança no protocolo de tratamento da doença, por meio da oferta de um novo medicamento, o artesunato, poderia poupar a vida de 195 mil pacientes. Alguns países africanos já adotaram esse novo protocolo nas suas diretrizes, mas esta abordagem é mais cara, e vai se tornar inviável sem recursos externos. Em 2009, o fundo Global ofereceu 65% de todos os financiamentos internacionais para a malária.

E quanto às metas internacionais?
Na Cúpula das Nações Unidas sobre a Aids, realizada em Nova Iorque, em junho deste ano, os governos assumiram o compromisso de expandir o tratamento contra HIV para 15 milhões de pessoas até 2015, e há algumas semanas. A Secretária de Estado dos Estados Unidos, Hillary Clinton, falou de sua visão de uma geração livre de HIV. Já neste ano, pudemos observar que o número de novas infecções no mundo se manteve, e não cresceu. Só isso já é um indicativo de que estamos dando passos à frente na luta para controlar a Aids nas regiões mais afetadas. Não podemos perder este momento.

Também não faltam planos ambiciosos para reduzir as mortes e o sofrimento causados pela TB e pela malária. Fazer com que esses planos saiam da teoria e se concretizem é o nosso maior desafio no momento.

Então, qual é a mensagem para os financiadores?
Nós sabemos que o clima econômico não é favorável, e que muitas pessoas que vivem em países ricos estão passando por um período complicado. Mas nós precisamos manter o financiamento internacional para ações médicas, até porque o montante necessário para salvar vidas em países em desenvolvimento é muito pequeno se comparado ao orçamento nacional das nações mais ricas.

Financiadores e países precisam assumir seus papeis na luta contra essas doenças nos países em desenvolvimento. Não faz sentido pensar que nós podemos reduzir o número de pessoas que precisam de tratamento por meio do racionamento da assistência médica.

Precisamos colocar em prática mecanismos de financiamento constantes, como o tão falado Imposto sobre Transações Financeiras. Mas ainda vai levar um tempo até que esses mecanismos apresentem resultados, e a necessidade dos países de liderar a oferta dos recursos necessários para garantir tratamento a milhões de pessoas é urgente.

Não podemos parar agora que estamos começando a colher os frutos dos nossos investimentos.

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