Porque o amanhã precisa delas

Presidente de MSF na Bélgica fala sobre a importância de o mundo se empenhar em cuidar das mulheres

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“Em 2006, eu era parte de uma equipe da organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) que estava conduzindo uma visita exploratória na província de Equateur, uma área isolada e subdesenvolvida no norte da República Democrática do Congo (RDC). Um dia, nós visitamos um hospital local com aspecto largado em um vilarejo empoeirado ao longo do Rio Congo, onde esperávamos lançar uma resposta médica a um recente surto de doença do sono.

Quando entrei na instalação, vi um corpo estendido no chão, coberto por um cobertor.

‘Quem morreu?’, perguntei.

‘Uma jovem dando à luz’, me disseram.

Eu nunca soube o nome daquela mulher, mas nunca me esqueci dela. Eu sabia que as instalações de saúde naquela região sofriam com a enorme falta de recursos e de profissionais de saúde qualificados. Sabia que muitas mulheres ao redor do mundo não têm o poder de tomar decisões cruciais, como, por exemplo, gastar ou não dinheiro para alugar um veículo para levá-las ao hospital mais próximo, mesmo quando precisam desesperadamente chegar até lá. Sabia da estatística que nos diz que cerca de 800 mulheres morrem todos os dias devido a complicações na gravidez. Mas também sabia que não precisava ser assim, e ver aquela jovem estirada ali, como uma consequência disso, me impressionou profundamente.

Aquela cena também me deixou furiosa. Ver uma mulher morrer à toa, porque ela não teve acesso a cuidados médicos, me deu vontade de gritar. Isso foi há anos e ainda hoje mortes, que como aquela poderiam ser evitadas, continuam a acontecer com uma frequência inaceitável.

É verdade que tem havido progresso no campo da saúde das mulheres. Entre 1990 e 2010, houve uma queda de 45% na mortalidade materna em todo o mundo, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, da Organização das Nações Unidas (ONU), aprovados pela comunidade internacional em 2000, buscaram reduzir as mortes relacionadas com a gravidez no mundo em três quartos até 2015.

A notícia é boa, obviamente, mas em muitos países onde MSF trabalha, as vidas de um número alarmante de mulheres ainda estão sendo perdidas. No Afeganistão, as mulheres morrem durante o parto 38 vezes mais do que no Reino Unido. As taxas de mortalidade materna são 178 vezes maiores na República Centro-Africana (RCA) do que no Japão, e 220 vezes maiores no Chade do que na Suécia.

MSF mostrou que não precisa ser assim, que atuações simples e de baixo custo realizadas por profissionais de saúde qualificados poderiam salvar muitas das 800 mulheres que morrem diariamente por problemas relacionados à gravidez. Para citar apenas um exemplo: em 2012, a organização implementou um sistema de referência por ambulância nos distritos de Kabezi, no Burundi, e em Bo, em Serra Leoa. Esses países têm as taxas de mortalidade materna mais altas do mundo, mas pouquíssimos hospitais ou profissionais médicos qualificados.

Antes, as complicações durante a gravidez eram como uma sentença de morte para as mães e também para os bebês. Porém, com o sistema de referência por ambulância, quando uma mulher demonstra sinais de parto complicado, a clínica de saúde local pode pedir uma ambulância. O veículo chega e pega a paciente, que é acompanhada por uma enfermeira ou uma parteira a um hospital onde profissionais treinados e qualificados estão a postos, e serviços cirúrgicos e de transfusão sanguínea estão disponíveis, de graça, 24 horas por dia. Os resultados têm sido impressionantes: a taxa de mortalidade materna em Kabezi caiu 74%, e em Bo, 61%.

Essas são mulheres extremamente fortes e são qualquer coisa, menos vítimas.

MSF é uma organização médico-humanitária que trabalha em cerca de 70 países, tratando pessoas que foram afetadas por conflitos, desastres naturais, doenças, epidemias, privação grave à assistência médica, e negligência a longo prazo. Em essência, nossa missão é oferecer cuidados de saúde que podem salvar vidas para aqueles que não podem ter acesso a eles de outra forma.

Eu trabalho com MSF há mais de 20 anos, primeiro trabalhando como enfermeira em campo, depois administrando outros projetos em diversos países antes de me tornar diretora de operações. Hoje sou presidente do escritório de MSF na Bélgica. Embora não sejamos especificamente uma organização de cuidados de saúde das mulheres, a maioria de nossos pacientes são mulheres e crianças. Projeto após projeto, eu tenho visto nossas salas de espera e ambulatórios cheios de mulheres grávidas, mulheres que foram feridas ou ficaram doentes, e mulheres com seus filhos. Tenho visto mulheres caminhando longas distâncias em situações perigosas para ter a certeza de que seus filhos receberão vacinas e tratamentos, ou arriscando tudo, incluindo a rejeição de seus maridos, para evitar a transmissão de HIV para seus bebês durante a gestação.

Essas são mulheres extremamente fortes e são qualquer coisa, menos vítimas. Muitas realizam um trabalho braçal exaustivo, além de administrar seus lares e cuidar de seus filhos e de outros membros da família. Durante conflitos e outros eventos que causam deslocamento, por vezes, elas têm ainda mais responsabilidade, frequentemente atuando como as únicas cuidadoras de seus familiares. No entanto, apesar das enormes obrigações que assumem, elas raramente têm o poder de decidir quando terão acesso a cuidados e suas vidas estarão a salvo.

Simplificando, as mulheres correm riscos de saúde distintos, que não interferem na saúde dos homens, e esses riscos precisam ser acompanhados.

Simplificando, as mulheres correm riscos de saúde distintos que não interferem na saúde dos homens, e esses riscos precisam ser acompanhados. Vamos começar pelo óbvio: mulheres ficam grávidas e têm filhos. Em todo o mundo, mais de um terço de todos os partos têm complicações, e 15% de todos os partos envolvem complicações com risco de morte – condições que podem matar mulheres se elas não tiverem acesso a cuidados de emergência. Mundialmente, pelo menos, 287 mil mulheres morrem durante ou pouco depois do parto, todos os dias. Muitas poderiam ser salvas por cirurgias eficazes, profissionais de saúde qualificados que reconheçam a gravidade de suas condições, serviços de transfusão, transporte rápido a instalações médicas ou às próximas já existentes.

É comum que as mulheres e meninas que conseguem sobreviver a uma complicação que ameaça suas vidas sem cuidados de emergência, as chamadas sortudas, percam seus bebês e podem desenvolver uma fístula obstétrica, que, embora não represente um risco imediato, pode ter profundas consequências para sua saúde e seu futuro. Muitas mulheres com fístulas não só carregam a tristeza de uma criança perdida; elas também enfrentam a rejeição de seus maridos, suas famílias, e suas comunidades.

Há soluções. Bons sistemas de referência por ambulância são uma, maternidades são outra.

Quando uma mulher consegue ter seu filho com êxito, a falta de cuidados suficientes voltados para recém-nascidos em muitos lugares põe em perigo a capacidade de sobrevivência de seus filhos nas primeiras semanas de vida. As chances de um recém-nascido sobreviver são muito menores se o parto foi prolongado e complicado. Em 2013, 2,8 milhões de bebês morreram antes de completarem um mês de vida, principalmente devido à asfixia, infecção, prematuridade ou complicações associadas ao baixo peso ao nascer. Novamente, o acesso a profissionais de saúde treinados apropriadamente e cuidados relativamente básicos poderiam ter salvo muitas dessas crianças.

Há soluções. Bons sistemas de referência por ambulância são uma; maternidades são outra. Em lugares onde uma mulher mora longe do hospital mais próximo, ela pode passar as últimas semanas de sua gravidez em uma casa perto de um hospital em funcionamento, ao lado de outras mulheres grávidas que podem contar com o cuidado que elas e seus bebês precisam no parto. Isso é exatamente o que MSF oferece em Masisi, na RDC, em uma maternidade de 70 leitos, que está quase sempre com capacidade máxima. Essa é outra intervenção simples com amplas consequências.

Os desafios que as mulheres enfrentam vão além de partos, claro. Por diversas razões, mulheres são mais vulneráveis a contrair o HIV e elas lutam para conseguir tratamento se estiverem com o vírus. Elas também suportam o terrível fardo de eventualmente passar HIV aos seus filhos.

Crescer como uma mulher por si só pode levar a riscos de saúde: em muitos países, a tradição da mutilação genital feminina persiste, afetando até duas milhões de meninas a cada ano. Não há benefícios à saúde e a prática é extremamente dolorosa e debilitante, com consequências de saúde imediatas ou ao longo de suas vidas.

Em tempos de guerra, o acesso a cuidados de saúde, por vezes, fica reduzido, afetando a todos. No entanto, para as mulheres, o conflito resulta em ainda menos opções de cuidados maternos ou pediátricos, ou vacinas para seus filhos. O conflito também cria ambientes de exploração desenfreada das mulheres e meninas e de estupro usado como arma. O deslocamento de pessoas em geral, seja devido às necessidades econômicas ou catástrofes naturais ou provocado pelo homem, deixa as mulheres e meninas mais vulneráveis à violência sexual e ao tráfico de pessoas.

Em muitos dos lugares onde MSF trabalha, as mulheres não têm acesso a controle de natalidade e controlam muito pouco suas próprias vidas sexuais. Se uma mulher ou menina sofrem com uma gravidez indesejada, há poucas opções. Se ela leva a gravidez até o fim, as consequências sociais podem ser duras. Se ela decide buscar um aborto inseguro, como milhões de mulheres que não têm acesso a abortos seguros fazem todos os anos, corre o risco de ter ferimentos graves, até mesmo de morrer.

Essas questões e o sofrimento associado a elas não são novos ou desconhecidos, mas ainda não foram devidamente considerados. MSF tenta ajudar o máximo de pessoas que consegue e, mais comumente do que gostaríamos, nós somos a única organização médica nos lugares onde trabalhamos. Em 2013, por exemplo, acompanhamos mais de 182 mil nascimentos; oferecemos cuidados médicos para mais de 11 mil sobreviventes de violência sexual e cuidados de prevenção da transmissão do HIV de mãe-filho para quase 16 mil mães vivendo com o vírus e para seus bebês.

Somos os primeiros a dizer, no entanto, que muitas mulheres estão fora de nosso alcance, que há muitos serviços que não oferecemos (como o tratamento de câncer de mama) e que há debates políticos e de direitos humanos nos quais não nos envolvemos além do quadro de nossas atividades médicas, como a luta pelos direitos das mulheres.

Ao mesmo tempo, em nome das pessoas que tratamos, nós pressionamos por mudanças. Nós fazemos um apelo às comunidades humanitárias e internacionais – junto a governos nacionais e partes envolvidas em conflitos – para agirem quando essas vidas estão em jogo.

Essas mulheres não serão esquecidas. Elas não podem ser, porque, como diz o título deste texto, o amanhã precisa delas.

Isso é verdade no Afeganistão, Paquistão, Serra Leoa, Burundi, Colômbia, Sudão do Sul, RDC e em todos os outros países onde MSF trabalha – em todos os outros países, ponto. Como organização, estamos ansiosos pelo dia em que as mulheres de todo o mundo terão acesso ao tipo de cuidado médico que muitos de nós, do mundo desenvolvido, já temos; por um futuro em que nenhuma menina ou mulher terá de morrer porque não pôde chegar a um hospital a tempo; e pelo dia em que terei a segurança de que, ao entrar em um hospital rural remoto, não vou ver um corpo no chão, de uma mulher cuja vida foi perdida durante um parto.

Eu espero que esse pequeno projeto contribua para a continuação desse sonho. E agradeço a vocês pelo interesse na crise global de acesso a cuidados médicos para mulheres e meninas.”

Meinie Nicolai 
Presidente de MSF-Bélgica

Confira as galerias de fotos e textos com os contextos apresentados durante a Semana da Mulher MSF:

Emergências obstétricas
Saúde reprodutiva de adolescentes
Saúde materna antes e depois do parto
Consequências do aborto inseguro

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