Acompanhando os passos de uma campanha de vacinação no leste da Rep. Democrática do Congo

Fotógrafo acompanha rotina de clínica móvel de MSF em áreas remotas do país

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Por Phil Moore

Nada sai exatamente conforme o planejado no leste da República Democrática do Congo (RDC). Era para levarmos três horas da base da organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Masisi ao centro do vilarejo de Kazinga. Seis horas depois de carregarmos um Toyota Landcruiser, finalmente chegamos, tendo atolado na lama, ficado presos atrás de caminhões pipa e reconstruído pontes de madeira precárias sobre córregos e rios, que cederam após a passagem dos cinco veículos do nosso comboio.

Eu não sabia exatamente para onde íamos. Kazinga era apenas um pequeno ponto em meio a uma grande extensão de nada no mapa mais detalhado que consegui encontrar na base. “Não dá para confiar exatamente nessa localização, de todo jeito”, uma das pessoas da equipe me disse. Os outros vilarejos que esperávamos visitar, onde passaríamos a noite, nem apareciam. Meu único guia era um mapa todo rabiscado, que dava distâncias aproximadas a pé entre as regiões. No mapa “oficial”, essas regiões eram simplesmente enormes vazios.

Em Kazinga, MSF reuniu uma equipe de 55 carregadores para levar todo o equipamento necessário para realizar a tarefa colossal de vacinar as comunidades que, até então, estavam privadas de qualquer acesso a infraestrutura. Saímos da última estrada que veríamos pelos próximos quatro dias. Nuvens carregadas cobriam nossas cabeças, e trilhas lamacentas estreitas estavam já com as marcas de nossas botas. A chuva torrencial que caiu durante dez minutos da nossa jornada não seria a primeira. A vegetação pesada dessas montanhas verdes precisa de muita água para prosperar.

Se a vizinha Ruanda é conhecida como “A Terra das Mil Montanhas”, o leste da RDC, então, deveria certamente ser a terra das dez mil. E nós, imediatamente, começamos a deslizar por uma delas cercados por uma densa floresta e picos redondos. Por vezes, grossas lâminas de capim-elefante cobriam o caminho, chegando a roçar nossos rostos.

Raramente me senti isolado na RDC, mas as trilhas desses primeiros dias cruzaram os territórios de dois diferentes grupos armados, estranhamente marcadas pelo vazio, onde o som de nossas pisadas parecia ser amplificado. No decorrer da semana, nos deparamos com vilarejos inteiros que haviam sido abandonados por causa do conflito. A mata tinha clamado caminhos e até mesmo casas. No vilarejo de Luho, o único indicador de que o local havia sido ocupado era a aparição ocasional de bambus, marcando a porta de uma casa. Além disso, todas as estruturas eram pura vegetação, com abundância de ervas daninhas.

Pelo caminho, ocasionalmente éramos lembrados das razões pelas quais a região é tão deserta: grupos de homens reunidos no alto das montanhas, vestidos como civis, mas portando seus rifles AK-47 sobre os ombros, e falando em seus rádios. Desde que deixamos Masisi, não houve mais sinal nos celulares e a única forma de comunicação é o rádio ou o telefone por satélite.

O terreno era difícil; a lama fazia das botas de borracha uma necessidade. Depois de duas horas caminhando, fiquei com uma bolha no calcanhar que incomodava a cada descida, na medida em que meus pés deslizavam dentro da bota. Minhas pernas se aqueciam com o ritmo da caminhada, mas sempre que eu parava para fotografar era difícil retomar o passo, convencer o ácido lático dos meus músculos. Mas, apesar das queixas, eu carregava apenas 20 kg nas costas, enquanto o mais leve dos carregadores trazia coolers enormes amarrados a eles com bambus, única forma de manter as vacinas resfriadas o suficiente para sobreviverem à semana. Se esquentassem muito, toda a empreitada teria sido em vão.

O sol logo se pôs quando chegamos a Ngomashi, primeira parada e onde passaríamos a noite. O trovão estrondava sobre as montanhas, e os raios no céu anunciavam muito mais lama para a manhã seguinte.

O grupo se dividiu em equipes menores e partiu em diferentes rumos para cobrir o máximo de locais. Quando passávamos por pequenos vilarejos em direção ao nosso posto de vacinação, Papa Pascal, o promotor de saúde de MSF, chamava todas as mães do vilarejo para levarem seus filhos a Kishee para serem vacinados. Esses locais parecem esquecidos pelo Estado e, por isso, maximizar o número de pessoas atendidas por essa campanha era fundamental.

Quando chegamos em Kishee, um homem construía uma nova casa com gravetos cobertos com folhas frescas de palmeira. Próximo a essa pequena residência podíamos observar os restos da igreja. As paredes de concreto estão se desintegrando e repletas de musgo. O telhado já sucumbiu. Sobre os bancos feitos a partir de tiras de bambu, folhas de palmeira secas oferecem sombra, embora sejam pouco úteis para abrigar da chuva que já se anunciava.

Multidões de mães rapidamente se reuniram do lado de fora enquanto a equipe desembrulhava seringas, luvas de borracha, cartões de vacinação e começava a preparar as vacinas. Em um curto espaço de tempo, o som de crianças gritando atravessava o ar, na medida em que tinham seu primeiro encontro com a agulha. Algumas das crianças mais corajosas permaneciam obedientemente aguardando na fila, com seus rostos estoicos diante da picada da agulha.

Ao cair do crepúsculo, falei com Amin Bandu, uma menina de 17 anos de idade que vive no vilarejo de Katanga. Não há centro de saúde nem em Kishee nem em Katanga; as pessoas são obrigadas a ir ao centro de saúde de Ngomashi, caminho que fizemos pela manhã. Ela descreve as dificuldades de se viver naquela área: “É impossível chegar a Ngomashi quando há insegurança. É aterrorizante. Frequentemente, somos atacados por grupos armados”, explica. “Já vi pessoas sendo mortas.” O grupo que havíamos passado quando deixamos Kazinga alguns dias antes era temido por esses ataques.

Naquela noite, enquanto dormia no chão da tenda de lama onde eu e Amin tínhamos conversado, fui acordado por um tipo bastante diferente de exército: formigas tinham invadido meu saco de dormir e picavam meu corpo todo. Fico ali acordado até meu alarme disparar, quatro horas depois. Meus olhos estavam tão sombrios quanto a manhã que nos brindava; o vilarejo estava envolto em neblina e as luzes opacas apontavam apenas o contorno das montanhas pelas quais teríamos que caminhar rumo ao nosso próximo vilarejo.

De Kishee, passamos pelo vilarejo de Amin, tendo cruzado uma frágil ponte sobre o rio.  A ponte é feita de bambu e videiras. A cada passo, ela se flexionava e esticava e eu buscava videiras às quais pudesse me segurar em caso de a ponte finalmente sucumbir ao meu peso. Logo antes dessa ponte, havia um ponto de controle, controlado por milicianos de um dos grupos armados. Na medida em que a presença desses não era ameaçadora quando passamos com nosso grupo de carregadores – eles haviam recebido instruções para nos deixarem passar livremente – as reais negociações eram acerca da garantia da passagem igualmente livre dos carregadores uma vez que nossa jornada de vacinação estivesse terminada.

O vilarejo de Kalungu marcou o ponto mais longínquo de nossa expedição, e parecia estar completamente removido de participação política. Mas a globalização deu seu jeito de invadir esse local remoto, com chinelos de dedo de plástico e panelas de cozinha com o preço ainda rabiscado em caneta preta: US$ 8. Guarda-chuvas coloridos cobriam os rostos que corriam entre as cabanas de pau a pique, debaixo da tempestade que caiu naquela tarde. E então, há as armas dos homens das milícias que passam pelo vilarejo.

As pessoas aqui cultivam muito pouco; as plantações foram abandonadas por causa do conflito. Isso significa que alimentos passaram a ser escassos, apesar da rica vegetação que nos circundava. O “fou fou”, uma mistura de água e farinha, é a refeição habitual, geralmente feita batendo-se bananas secas em um grande almofariz com um pilão. Por vezes, nós comíamos no meio da tarde, mas havia dias em que a primeira refeição acontecia já durante a noite. O mercado semanal em Kazinga era abundante, mas, além do dia de viagem para se chegar ali, os habitantes dos vilarejos têm de negociar com grupos armados e questões acerca das etnias podem se deteriorar rapidamente.

Cinco dias depois do início de nossa jornada, finalmente voltamos a Kazinga. As gôndolas do mercado estavam vazias, e os homens armados se proliferavam. Logo que o granizo começou a cair sobre o teto de lata da pequena cabana, eu me abriguei com três deles. Um, com um AK-47, ficou em um canto, um lançador de granadas no outro. Símbolos, em parte, dos fatores que contribuem para a falta de desenvolvimento que chegou à essa terra.

Não menos que seis horas depois, tendo atolado por diversas vezes na lama grossa, vimos os primeiros sinais de autoridades do governo. Na medida em que nos aproximávamos da estrada principal, soldados do governo ocupavam as margens da rodovia. Com o desaparecimento gradual de estradas, desaparece também a influência do governo, e, fora dos principais eixos, adentra-se nos feudos dos múltiplos grupos armados da RDC.

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